quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A calçada

A escada rolante abria caminho para o negro céu através de um patamar curto e meia dúzia de degraus alagados. Vinha, desde o covil subterrâneo do metro, a sentir uma náusea crescente e inexplicável.
Os meus dedos, gélidos como sempre, buscavam o conforto insuficiente dos bolsos e a minha memória procurava o vazio absoluto. Cinco sentidos alinhados em busca do completo "nada" emocional.
As luzes quentes e a multidão abraçaram-me no estranho conforto de me saber incógnita e, ainda assim, incluída no grande todo.
A calçada escorregadia já não me colocava desafio algum porque a tinha percorrido tantas e quantas vezes naquele mesmo passo apressado. Numa analepse impossível, o Chiado voltava a arder na minha cabeça pesada, pulmões plenos de fumo, a náusea adensando-se.
Os últimos dias, interruptores sucessivos e imprevisíveis, traziam, novamente, um convite ao mistério boémio daquelas pequenas transversais.

(...)

Horas depois voltava a percorrer uma outra calçada molhada, longe do brilho do centro, num clarão vermelho de despedida e reencontro. Embaraçada com o telemóvel novo, disparando flashadas contra a estátua do momento, esqueci-me de todas as náuseas e julguei irónica e idiota a associação de finais naquele dia de Inverno.

Afinal todos nós, românticos, idealistas, escritores amadores retiramos destes dias chuvosos meia dúzia de parágrafos inspirados para compor o álbum interior de experiências. Empenhados e munidos de sentimento atacamos a folha ou o écran com palavras cortantes, profundas, reforçadas com uma série de dispensáveis recursos de estilo e imaginamos que vai ser aquele o início do nosso livro de memórias.

Depois de muitos inícios talvez se perca essa pueril e tonta convicção de que a nossa vida é diferente da dos outros milhões de indivíduos que vão escorregando nos mesmos passeios.

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