terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O tempo

O tempo de cada um de nós é extraordinariamente diverso para a execução das mais básicas e, também, das mais complexas tarefas da vida.

Hoje investi 2 minutos numa chamada telefónica, 10 minutos a mudar uma lâmpada, 20 minutos a conduzir uma consulta, 30 minutos a fazer uma viagem de carro. Demorarei, talvez, a partir daqui, 1 hora a preparar o jantar, 2 horas e meia a ver um filme no cinema, 7 horas a dormir. Qualquer outra pessoa faria, provavelmente, tudo diferente.

Mais extraordinário é o tempo que cada um de nós investe a processar ou gerir os eventos mais importantes das nossas vidas.

Separar, afastar, construir, viajar, ajudar, planear, investir, passear, partir, mudar. 

Para cada verbo há uma distância entre a decisão e a execução, há um antes e um depois, há causas e consequências, vantagens e inconvenientes. Para cada um de nós há um contexto, uma história, uma expectativa, uma crença e um receio que modulam as vivências irreprodutíveis de cada dia e que fazem com que o outro, o do lado (mesmo o amigo mais próximo, o médico mais dedicado, o observador mais atento), jamais possa, em todo o rigor, colocar-se no nosso lugar, prever os nossos passos, orientar o nosso caminho ou medir os nossos sentimentos.

Cada verdade é vivida individualmente. A bússola moral de cada um está longe de ser um objecto de ponteiros exactos. Até para a mesma pessoa, como numa ilusão da mente, o mesmo cenário pode ser profundamente transformado se variarmos o local de observação. Daqui até ao ponto de fuga existe uma linha de infinitos pontos, em cada um podemos parar e demorar, rodar e observar 360º graus em redor e criar, para cada perspectiva, uma interpretação pessoal.

Nunca o observador será uma tábua rasa de experiências ou preconceitos, um membro imparcial e excluído do sistema que contempla. Ao contrário, projectamos sempre algo de nós em tudo que fazemos, comparamos com o que conhecemos e estranhamos o que nunca vimos.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Caixa de Música

Na caixa de música que eu imagino a bailarina rodopia em pontas sobre si mesma, num perpétuo movimento de rotação, enquanto a pequena engrenagem emite um Debussy meio rouco mas adorável.

A vida acontece e a caixa permanece, sem descanso. Até depois disso e ainda que passem anos e se estrague o mecanismo, mesmo que já não rodopie a menina ou já não se ouça senão um trovejo frouxo sem melodia, ficará a caixa no seu lugar, sentinela de todas as memórias.

Mesmo quando já não servir para nada, eu sei, ainda servirá para mim.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A calçada

A escada rolante abria caminho para o negro céu através de um patamar curto e meia dúzia de degraus alagados. Vinha, desde o covil subterrâneo do metro, a sentir uma náusea crescente e inexplicável.
Os meus dedos, gélidos como sempre, buscavam o conforto insuficiente dos bolsos e a minha memória procurava o vazio absoluto. Cinco sentidos alinhados em busca do completo "nada" emocional.
As luzes quentes e a multidão abraçaram-me no estranho conforto de me saber incógnita e, ainda assim, incluída no grande todo.
A calçada escorregadia já não me colocava desafio algum porque a tinha percorrido tantas e quantas vezes naquele mesmo passo apressado. Numa analepse impossível, o Chiado voltava a arder na minha cabeça pesada, pulmões plenos de fumo, a náusea adensando-se.
Os últimos dias, interruptores sucessivos e imprevisíveis, traziam, novamente, um convite ao mistério boémio daquelas pequenas transversais.

(...)

Horas depois voltava a percorrer uma outra calçada molhada, longe do brilho do centro, num clarão vermelho de despedida e reencontro. Embaraçada com o telemóvel novo, disparando flashadas contra a estátua do momento, esqueci-me de todas as náuseas e julguei irónica e idiota a associação de finais naquele dia de Inverno.

Afinal todos nós, românticos, idealistas, escritores amadores retiramos destes dias chuvosos meia dúzia de parágrafos inspirados para compor o álbum interior de experiências. Empenhados e munidos de sentimento atacamos a folha ou o écran com palavras cortantes, profundas, reforçadas com uma série de dispensáveis recursos de estilo e imaginamos que vai ser aquele o início do nosso livro de memórias.

Depois de muitos inícios talvez se perca essa pueril e tonta convicção de que a nossa vida é diferente da dos outros milhões de indivíduos que vão escorregando nos mesmos passeios.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Kamikaze love

“ See, I’ve always had this penchant for what I call “kamikaze women,” I call them kamikazes because they crash their plane, they’re self-destructive, but they crash it into you, and you die along with them. As soon as there’s a challenge, as soon as there’s very little chance of it working out, or no chance, or there’s going to be hurdles or obstacles, something clicks into my mind, maybe that’s because I’m a writer, but some dramatic, or aesthetic component becomes right and I, I go after that person and there’s a certain dramatic ambiance that, that, it’s almost as though I fall in love with the person, in love with the situation in some way, and of course, it has not worked out well for me, it has not been great…" 


Woody Allen - Husbands and Wives

Gavetas

"Contador Antropomórfico" Salvador Dali, 1936


Sem querer és um armário profundo
E vives das gavetas no teu peito
Se as deixo engolem-me o mundo
Se as abro perdes-me o respeito

Confusa, avanço e tropeço
Na densa multidão de bagagem
Caída, ainda assim, não me despeço
Agarro-me no fim àquela imagem
Talvez me perdoes no regresso
E haja ainda outra viagem.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Sextas

Às sextas as consultas são muitas e rápidas, sucedendo-se como capítulos de um livro de bolso. A falta de espaço obriga a não ter morada certa, a passear o precioso espólio médico de um gabinete para outro, a fazer de cada sala emprestada um local de dedicado trabalho.

Antes de tudo, entrei no gabinete amplo, as oito da manhã ainda impressas na minha expressão e na minha postura e sentei-me na cadeira giratória. Sublime e inusitada, a luz dourada do início da manhã entrava às golfadas pelo gabinete e sobrepunha-se com paixão ao monótono cinzento do chão. Ali sozinha, ocupando sem querer o holofote de sol, compunha uma cena em tudo antagónica ao ambiente cerrado e ruidoso da sala de espera. Respirei fundo e preparei-me para mais um começo.

Em sucessão, as pessoas, mais ou menos doentes, sentaram-se consecutivamente em réplicas da mesma cadeira de estofo azul enquanto eu acenava, concordava, repetia, reiterava, sorria, argumentava, informava, consolava, perguntava, propunha, empatizava e ouvia. Ali mesmo, todos os verbos e todos os sentimentos do mundo, enfeitando e povoando os múltiplos rostos acesos.

E invariavelmente, as sextas terminam neste sofá em que me encontro, revendo mentalmente os episódios da semana: o mil-folhas delicioso, o sorriso épico do menino que nunca sorria, o abraço no corredor, o elogio na hora certa, a chave que salvou o dia, o gato meloso, o jantar saboroso da mamã, o corre-corre das tarefas de última hora, o desejo de um adolescente perdido, o mundo em forma de bola de plástico aqui e agora na palma da minha mão.